segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O Namoro




Festa de 9 anos do primo do Victor, o Tadeu, filho do Tio César, que é irmão da mãe de Victor.

(Tio César) – Que bom que chegaram! Podem sentar aí onde quiserem, a festa só vai começar daqui uma hora, estamos terminando de ajeitar as coisas lá fora. E você, heim Victor? Como já está grandão!
- É, né? Dizem que é a fase de crescimento.
– Pois deve ser mesmo! E sabe do que mais? Essa também é a fase dos namoricos! Conta aqui pro tio, quantas namoradas você já tem?
- Tio, sabe o que eu acho estranho?
- Sei, muitas coisas! Hahaha!
- Sim, mas nesse caso específico, eu acho estranho que vocês – adultos – fiquem nos perguntando “quantas namoradas” nós temos, assim no plural, como se isso não fosse uma transgressão à nossa regra moral de monogamia. Porque fazem esse tipo de pergunta, no plural, só para os meninos? As meninas também podem ter vários namorados…
- Victor, a gente fala isso no sentido figurado, porque um cara bonitão como você deve poder até escolher quem quer namorar!
- Mas, tio… Isso eu não entendo. Outro dia escutei o tio Ricardo falando que um amigo dele podia escolher quem quisesse namorar porque era muito rico, e agora você me diz que eu também posso escolher, porque eu sou “bonitão”. Eu fico pensando, o que sobra pra quem não é rico e nem bonitão, na opinião de vocês?
- Sobra se contentar com a primeira maluca que vier, meu filho! Hahaha!
- Eu num acho muita graça nisso, não. E nem acredito nesse atributo de escolha. A gente não escolhe nada nessa vida, tio. Já escolhem qualquer coisa por nós antes mesmo de pensarmos no assunto. Porque escolheríamos namoradas e namorados? Não faz sentido.
- Então você vai ser o tipo do cara que vive sem amor, Victor?
- Sem amor não se vive, tio.
- Então você tem uma namorada pelo menos?
- Não, eu não namoro. Eu amo a Duda, e ela me ama também.
- E você não namora?
- Não namoro. Só amo.
- E porque não namora, já que ama?
- Porque uma coisa não é consequência da outra, tio. O namoro é só uma instituição que vem de fora, não tem nada a ver comigo e com a Duda. Só que tem gente que não entende isso, mas eu entendo essas pessoas. Já estão muito avançadas no convencimento de que o amor requer uma instituição de apoio, acho que quem está convencido disso não tem muito o que fazer, tem mesmo é que se submeter a esse amor produzido. Vão viver algum tipo de felicidade também, creio eu.
- Casamento então, nem pensar né?
- Casamento não é maior do que namoro. São instituições, pra mim têm o mesmo peso, quem se submete, está se submetendo às mesmas dores.
- Então sem namorar nem casar o amor não traz dor? É isso?
- O amor não traz dor, ainda que você se case ou namore. Quem traz dor são os recipientes do amor: nós.
- E como é que você sabe disso tudo?
- Ué, eu amo a Duda.
- Mas você nunca teve outra experiência, como sabe que essa é válida?
- Eu amo a Duda hoje, o que me importa é a experiência de hoje. Amanhã eu não sei o que vai acontecer. Eu acho que só ama quem entende que o importante é amar hoje.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O Deus




- Mãe…
- Oi filho.
- Como que Deus não cai do céu?
- Como assim, Victor?
- Você vive falando que o “Papai do céu” mora depois das nuvens… Como ele não cai?
- Ah… Bom, é que Ele é Deus né. Ele não cai ué, que pergunta!
- Só porque ele é Deus ele não cai?
- Como assim “só porque”, meu filho? Ser Deus é uma coisa muito grandiosa.
- Tá, eu sei. Mas ser um Victor também é uma coisa muito grandiosa, mas isso não explica o motivo pelo qual eu caio se eu tentar morar depois das nuvens mãe… Eu sei que Ele é Deus, mas isso não é suficiente pra eu entender por quê Ele não cai de lá de cima.
- Victor, ele flutua. Tá satisfeito?
- Não. Você acabou de inventar isso só pra eu parar de falar.
- Tá bom, Victor. Olha só, falar que Deus mora no céu é só uma figuração que a gente usa com as crianças, mas acho que eu não preciso mais usar isso com você. Ele não mora lá em cima, Ele está em todos os lugares.
- Mas se ele está em todos os lugares, Ele tá lá em cima no céu também. Como ele não cai?
- Ah filho, sei lá! Ele é Deus ué!
- Mãe… Ele é Deus e eu sou Victor. Te falar que as coisas acontecem comigo só porque eu sou quem eu sou não explica nada.
- Meu filho, tome cuidado ao se comparar com Deus.
- Mas mãe, não foi Ele que me criou?
- Foi.
- Então ué, ele só pode ter me criado a partir de alguma coisa que Ele já conhecia, e como no início Ele só conhecia a si mesmo, deve ter me criado parecido com Ele. Qual o problema na comparação?
- É que Deus está muito acima de você, meu filho, e de todos nós.
- É, eu sei, lá nas nuvens, sem cair. E deve tá abaixo também né mãe, se Ele tá em todos os lugares, deve tá lá no pré-sal sem enriquecer, nos vulcões sem Se queimar, nos mares sem Se afogar, no Senado sem se corromper, e por aí vai.
- Victor, o nome disso é blasfêmia.
- Mãe, o nome disso é raciocínio. Porque você não assume que nem você sabe algumas coisas que você tenta me ensinar?
- Olha o respeito Victor!!!
- Mas é verdade, mãe. Isso não é vergonha pra você, você não é obrigada a saber de tudo pra poder me criar. Você não é Deus. Você é um ser humano. Você tem o direito de se enrolar com tudo que você tem que fazer além de ser mãe, e o que eu queria dizer com essa conversa toda é que tá tudo bem em não saber. Não precisa mentir pra mim, senão eu passo essa mentira pra frente e serão gerações inteiras olhando pro céu pra poder rezar, acreditando que o Papai do Céu tá lá em cima nas nuvens; gerações inteiras acreditando que ser quem a gente é é a única coisa que a gente pode ser; gerações e mais gerações disciplinadas a olharem pra cima ao invés de olhar em volta, e gerações inteiras acreditando que é de cima que vem as coisas mais sensatas. É por isso que tanta gente tem chefe, mãe. Foram ensinados a obedecer o que vem de “cima” e quando o Papai do Céu sai de cena, a pessoa cresce e endeusa o chefe, que nada mais é do que  o dinheiro né mãe? Não quero ser assim, quero que você me fale porque Deus não cai lá de cima.
(Pai) - E aí filhão, armou mais uma arapuca pra sua mãe né?
(Victor) - Pai! Que bom que você chegou! Fala pra mãe porque é que Deus não cai do céu.
(Mãe) - Ah eu desisto, de novo.
(Pai) Calma, Victor. Não pega tão pesado com a sua mãe, ela foi criada num cenário diferente do seu, lembra? Mas olha meu filho, o mundo tá de cabeça para baixo. Deus tá em terra firme. Se você parar pra pensar, a pergunta é: como é que nós não caímos daqui?
- Vai ver a gente tá caindo, pai…

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A Flor




- Ei pai, tá ocupado?
- Eu nunca estive desocupado, filho. E é por isso que eu tenho tempo pra tudo, diga lá!
- Hoje no colégio uma menina recebeu um buquê de flores de um garoto que gosta dela…
- Ah é? Qual menina?
- Ah, uma lá.
- Entendi. E você gosta de alguma menina que mereça um buquê de flores, Victor?
- Pai, eu já sou brega ao me vestir, não preciso ter comportamentos românticos bregas.
- Você não é brega, nada. Eu me amarro nas suas roupas!
- Você é mais brega do que eu, pai.
- Então, voltemos a falar sobre meninas… Tá gostando de alguma é?
- Não, pai. Tenho muito o que fazer antes de gostar de alguém ainda.
- Então você está planejando dar flores a quem?
- Ninguém, pai. Na verdade eu quero saber de você, por que é que as pessoas matam flores pra demonstrar amor?
- Filho, eu não sei se posso te responder isso da melhor maneira, mas posso te dar minha opinião, serve?
- Eu acho que é a melhor maneira, pai.
- Sei não… Mas, acho que as pessoas se preocupam bastante em demonstrar o amor através de coisas, sabe filho? O sacrifício das flores é um bom exemplo. Elas, por si só, não significam o amor que seu coleguinha sente pela sua coleguinha, mas o ato de entregar flores, sim. Porque se constituiu, ao longo do tempo, que isso significa demonstrar amor.
- E essas coisas que se constituem não são repensadas nunca mais? Quer dizer, as flores não têm nada a ver com uma paixão ou outra, a função delas não é essa. Elas morrem fora de hora para celebrar amor, há tempos, e isso ainda não mudou? Isso eu não entendo.
- Coisas piores acontecem em nome do amor, filho. Morrem não só flores, mas também valores.
- Então tem algo errado com o amor?
- Não, Victor. O amor não tem nada a ver com a forma com a qual ele é tratado. Tem algo errado com quem não vive em amor.
- E viver em amor, pai, o que é?
- Viver em amor é perceber o que não é para ser percebido. O amor achou o mundo doido, Victor, e se escondeu. E para viver em amor nós precisamos perceber o que não está disposto a nossa frente quando nós somos apenas reprodutores de costumes, como o costume de matar flores.
- Entendi, pai. Não parece tão difícil.
- E não é, mesmo. Mas, o mundo vai dizer que é.
- E por que?
- Porque isso é segredo, filho. Se todo mundo souber, os que lucram com a infelicidade vão falir.
- Ah é, já conversamos sobre isso…
- Era por essa dúvida que você estava olhando aquelas flores ali no jardim?
- Também, pai.
- Estão murchas, né?
- Era justamente sobre isso que conversávamos.
- Conversávamos?
- Sim, eu e as flores.
- Ah, sim.
- Eu fui até lá esperando encontrar um velório, pai. Flores murchas e tristes. Mas, cheguei lá e elas estavam todas cochichando, alegres e muito perfumadas. Perguntei o motivo de tanta alegria, já que estavam murchas, e uma me respondeu que elas estavam simplesmente olhando para baixo, porque é isso que fazem as pessoas que andam: olham para baixo para verificar onde podem pisar. Elas achavam, pai, que se olhassem para baixo poderiam sair andando. Eu acho que chega uma hora na vida da flor que esse engano acontece, sabe, elas pensam que precisam andar para serem livres. E, logo em seguida, elas morrem.
- Isso não acontece só com as flores, filho.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A Grama

Foto da IV Feira Grátis da Gratidão de Volta Redonda, onde o Victor sempre está presente


  
- Victor! Para de pisar na grama, menino! Anda na calçada! Vai estragar o jardim do bairro todo, muleque!
- Mas, tio José, a grama foi feita pra pisar, e não pra enfeitar.
- Pisar o que menino!
- É ué! Antes de ter asfalto, era tudo grama, terra… Ninguém achava que era pra enfeitar, e a gente pisava sem ninguém reclamar também.
- Até parece que você viveu nessa época né? Fala com tanta propriedade…
- Não vivi, mas é fácil de raciocinar que tem alguma coisa errada aí. Antes, quando era tudo natural, ninguém achava que era bonito o suficiente pra tomarmos tanto cuidado, a ponto de nem pisar. Agora que tá cada vez mais raro ver um pedacinho de verde no meio do cinza da cidade, essa gente parece que tá com medinho de que a graminha acabe. Tenha santa paciência! Eu sou contra pisar no asfalto, esse sim fez um mal danado depois que chegou… E meu pé é antigo, tio Zé. Ele pisa na grama.
- Olha como fala comigo, Victor! Seu petulante! Nunca vi, ficar tão afobado por causa de um mato qualquer, eu heim!
- Eu é que te digo isso, tio. Esse é um mato qualquer mesmo, e você é que ficou afobado de pensar que eu tava pisando nele. Eu não, eu fiquei foi assustado de pensar que você nem lembra da sua infância na roça, onde não tinha essas baboseiras de hoje em dia. Daqui a pouco você tá me falando pra não pegar sacolinhas plásticas no super mercado também.
- Ué, é contra isso também?!
- Tio, abre o olho, tio! Nem se todas as sacolinhas de mercado do mundo evaporassem agora, neste momento, o mundo estaria tão salvo quanto pregam essas “ecobags”. Isso é só pra você acreditar que a culpa do planeta tá indo pro buraco é sua, e da sua sacolinha.
- É… Nisso eu não tinha parado pra pensar…
- É, tio. Ninguém tem parado pra pensar. Aliás, ninguém tem parado, né? Parece que o mundo vai acabar em asfalto e sacolinhas plásticas amanhã, e todo mundo tá correndo pra pegar o ônibus, para poder chegar em casa e assistir tudo pela televisão…
- Isso é normal, Victor. As pessoas, quando crescem, não têm mesmo tempo pra ficar paradas pensando nessas mil coisas que você pensa. Não mesmo. Quando crescemos, temos que nos sustentar, temos preocupações com nossos empregos, nossos futuros…
- Tio Zé, normal vem de norma?
- Normal… Norma… Ah, deve ter alguma coisa aí de ligação sim!
- Então, norma quer dizer regra, né…
- Até onde eu sei, é.
- Então, de acordo com a regra, conforme vamos crescendo, deixamos de dedicar tempo para pensar mil coisas, né? Engraçado isso! É normal, portanto, é regra, que pensemos menos quando achamos que crescemos… E isso lá é crescer, tio?!
- Ih, começou você, Victor…
- Calma, tio, só to pensando… Enquanto eu não cresço. 

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O Presente




- Ei, tio Ricardo, meu aniversário tá chegando, tá sabendo né?
- E você me deixa esquecer, por acaso?
- Claro que não, ainda mais que esse ano eu quero que todo mundo me dê o mesmo tipo de presente.
- O mesmo tipo? Mas aí você vai ter vários presentes iguais…
- Sim, mas diferentes ao mesmo tempo.
- Tá bom… O que você quer que eu te dê de presente, então?
- Eu quero que você me livre.
- Te livrar? Mas, te livrar do que?
- Ah, de muita coisa…
- Então, se você diz que vai pedir o mesmo tipo de presente para todo mundo, quer dizer que vai querer que todo mundo te livre?
- Isso, mas cada um de um jeito.
- Ok, vamos lá. Eu fui escolhido para te livrar de que maneira?
- Você vai me livrar da lei da gravidade.
- Ferrou pro meu lado…
(Mãe) – Victor, que história é essa?
- Esse ano, mãe, como presente de aniversário, eu quero que vocês me livrem, cada um de um jeito.
(Mãe) - Livrar do que, meu Deus do céu?
- De várias coisas, mãe. Você, por exemplo, vai poder me livrar de ser humano.
(Mãe) - Victor, porque você não me pede um boneco de qualquer coisa, como os garotos da sua idade, heim? Que história maluca! Agora você quer que eu aceite que você não é humano?
- Não precisa aceitar, eu só quero que você me livre.
(Mãe) – A cada ano eu te entendo menos.
- Ah, disso eu sei. Mas, eu também não pedi compreensão. Só pedi que me livre.
(Pai) – Eu achei legal o pedido, filhão. Diga lá, o que você quer que eu te dê de presente?
- Você, pai… Eu quero que me livre de ver com os olhos.
(Pai) – Você é meu filho mesmo… É difícil te entender…
- É… Mas, em troca, você pode me pedir que te livre das concepções comuns, no seu aniversário.
(Tio Carlos) – Agora, vamos lá. To ansioso pra saber qual vai ser seu pedido para mim!
- Tio, quero que me livre de ser normal.
(Tio Carlos) – Hahaha! Como se você já tivesse sido normal algum dia…
- É só pra garantir que isso não venha acontecer no futuro.
(Tio Carlos) – Tá legal… Mas, como?!
(Mãe) – Eu não estou entendendo nada dessa conversa de livrar disso e livrar daquilo! Como é que a gente vai dar esses presentes pra você, filho? Nunca vi nenhuma loja onde se possa comprar esses livramentos. Não sei quem é mais doido, viu…
- Ah, vocês não conversam com as palavras, né? Isso eu não entendo. É por isso que temos tanta dificuldade de comunicação. Conversam só com pessoas, ao invés de conversar com os sentidos.
(Mãe) – Ah, eu desisto.
(Pai) – Eu, não! Vai Victor, ajuda a gente a entender.
- Mais ainda?! Quero que me livrem. Tio Ricardo, se eu quero que você me livre da lei da gravidade, é porque seu presente vai me dae asas e aerodinâmica, ou talvez me ajudar a flutuar! 
(Tio Ricardo) - Já sei! Um avião! Um voo de paraquedas?!
- Não. Mãe, se te peço para me livrar de ser humano, é porque esse presente pode me ajudar a conhecer outros caminhos para ser vivo. 
(Mãe) - Te levar num zoológico?
- Claro que não. Pai, para você me livrar de ver com os olhos, basta que seu presente me ajude a enxergar com sorrisos; enxergar com a minha mão tudo que existe de bonito quando estamos de mãos dadas; enxergar a compaixão que o abraço traz; enxergar a busca pela vida quando pisamos descalço; enxergar a esperança da garganta seca, enfim, tudo que o olho não capta sozinho. 
(Pai) - Mas... 
- E você, Tio Carlos, quero que me livre de ser normal porque sei que esse presente pode me ajudar a ter várias formas de caminhar sem ser pré-moldado.
(Tio Ricardo) – Mas que tipo de presente é esse, capaz de fazer isso tudo, Victor?
- (Um suspiro cansado)… Um livro. Não é óbvio? Tio Ricardo, quero que ache algum livro que conte a história de um menino que voa. Mãe, quero que me dê um livro sobre a vida dos lagartos. Pai, de você eu quero um livro de poesias. Tio Carlos, me dá um livro de filosofia?
(Mãe) - ...
(Pai) - ...
(Tio Ricardo) - ...
(Tio Carlos) - ...
- Que foi, gente? Que silêncio é esse? A palavra "livro" não vem de "livrar"? 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Prego





- Pai, tá fazendo o que?
- Oi filho! Vou martelar esse prego na parede para pendurar um quadro.
- E como você sabe que o prego vai aguentar o quadro?
- Ah, é um quadro pequeno, o tamanho desse prego é suficiente se for bem pregado.
- E não tem perigo dele se soltar da parede, pai?
- Não, filho. Pelo menos não agora, mas pode ser que com o tempo o buraco aberto na parede se alargue um pouco se esse prego for mexido várias vezes, como acontece se a gente ficar tirando e colocando o quadro do lugar toda hora, o prego vai se movimentar e a parede acaba cedendo mais espaço. Mas, fora isso, ele só sai com muita força ou com o uso de um martelo ou outra ferramenta parecida.
- Mas, e o quadro, pai? Ele vai ficar aí pregado nessa parede sem nunca mudar de lugar?
- Não, filho. Assim que a sua mãe resolver mudar a decoração da sala pela 90ª vez, ele provavelmente vai mudar de lugar.
- Entendi. Então ele depende da vontade da mamãe para se mover, né? É bem condizente com uma natureza morta, mesmo… E porque você está pregando nesta parede aí, pai, e não em alguma outra?
- Porque a sua mãe me daria uma martelada na cabeça se eu pregasse em outro lugar! Ela é doutora na decoração da nossa sala, filho, e disse que é para pregar aqui pra dar mais harmonia para o ambiente, então... Eu to pregando.
- Mas, pregar algo numa parede já é um condenamento muito sério, porque você interfere na vida do prego, do quadro e da parede, sem ser convidado a fazer isso. E você ainda prega sem nem questionar, pai? Você nem verificou se isso transforma ou deforma a harmonia da sala…
- É, filho… Mas acontece que, por falar em pregar, eu é que já estou pregado de cansaço das vezes que eu tentei dar opinião nas ideias da sua mãe. A fadiga é menor para mim quando eu simplesmente faço o que ela pede.
- Mas isso não é pedir, então. Se ela já convenceu a esse ponto, então ela só manda, pai. Você não faz um favor, você obedece.
- É, mas em troca eu assisto meus seriados em paz.
- Que paz estranha, pai. Você sabe que tem um prego e um quadro aprisionados numa parede porque você foi lá e pregou sem antes tentar perceber se isso os agradava. E você ainda diz que é isso que garante a sua paz?
- Victor, calma. São apenas paredes, pregos e quadros. Eles não se agradam, nem se entristecem, nem têm sentimentos como nós, filho.
- Você é um quadro?
- Não, claro que não.
- Então como você sabe como é ser um quadro?
- Vem cá, você não tem dever de casa mais não?
- Essa resposta fugitiva em forma de pergunta tem se tornado cada vez mais constante nas minhas conversas com você e com a mamãe. Meu dever de casa já tá feito.
- Então, ao invés de você ficar aí me tirando da minha zona filosófica de conforto, por que você não me ajuda com isso aqui?
- To fora. Não vou te ajudar a pregar algo que eu não concordo só porque você é um pai amigável.
- E você sugere que eu faça o que com os quadros da casa, então?
- Bom, pra começar eu sugeriria que você não pense que eles estão sob o seu comando ou da mamãe. Um quadro não é uma obra destinada à virar uma propriedade.
- Você acordou com os dois pés esquerdos hoje, é?
- Pai, só porque eu to te questionando, não significa que eu to de mau humor. Aliás, hoje está sendo um dia muito tranquilo, por sinal.
- Sei… E você já decidiu se vai dormir na casa da sua avó?
- Ah, pai, sei não… Toda vez que eu durmo lá eu tenho que ficar o dia inteiro com ela assistindo pregação na televisão. Quando toca a campainha eu já nem me apresso pra atender, porque eu sei que vai ser algum irmão trazendo mais pregação… Isso quando ela não me obriga a ir na igreja…
- Eu pensei que você gostasse de ir à Igreja com a sua avó, Victor! Você sempre diz que acha tudo aquilo muito bonito…
- E eu acho mesmo, pai… Mas, são apenas paredes, pregos e quadros… Eles não se agradam como eu, não se entristecem como eu e nem têm sentimentos como os meus, pai. Mas, é muito provável que eles pensem o mesmo de mim. Somos a mesma obra de arte. Eu só gosto de olhar...

sexta-feira, 30 de março de 2012

A Invenção



- Mãe, sabia que “inventar” é um vento que vem de dentro da gente?
- Não sabia disso, Victor. Aprendeu na escola?
- Não mesmo! Na escola eu aprendi que o vento é o ar em movimento, só isso.
- E da onde você tirou essa história então?
- Mãe, é só pensar. Quando a gente tá com o ar parado dentro da gente, tudo fica no mesmo lugar… Junta um monte de folha seca, dessas que já caíram da árvore faz tempo e nunca mais vão fazer sombra, só servem mesmo pra gente pisar e gostar do barulho. Sem contar a poeira que junta em lugar onde a gente não mexe há muito tempo… Pode reparar, aparece sempre aquele calor que abafa a gente e traz uma preguicinha. Tudo fica no mesmo lugar. Quando o ar tá parado é porque a gente se acomodou com essas coisas que a gente nem precisa, e elas acabam nos dizendo como agir, aliás, nos dizem para não agir, né. E a gente obedece sem nem saber o motivo. Isso é ar parado, mãe. Sem perceber, a gente para nosso ar.
- Victor, você…
- Para de franzir a testa, mãe. Deixa eu continuar. Aí, quando a gente inventa, muda tudo em algum lugar dentro da gente, e às vezes em todos os lugares. Vem esse vento que varre tudo quanto é folha seca pra bem longe e a gente volta a ver a grama verde que sempre esteve debaixo delas. A poeira é muito sensível à qualquer brisa, mãe, você precisa ver! O invento espana tudo que tiver empoeirado dentro da gente pro nosso verniz voltar a brilhar. E tem coisa melhor do que um invento quando nosso interior tá abafado? É o que a gente precisa pra ficar fresco por dentro. O vento de dentro chega desarrumando tudo que nosso comodismo nos convenceu de que estava arrumado. É isso. Um invento. Esse vento, mãe, faz as coisas voarem por alguns instantes. O invento traz asas. Bonito isso, né mãe? Vou até anotar, “o vento traz asas para dentro de nós”.
- Victor, você é uma criança, não devia ter “folhas secas” dentro de você, meu filho. E nem deveria se preocupar com isso.
- Mãe, pra isso não tem idade. Basta passar uma estação pra que as folhas caiam, isso é natural. E se eu não preocupar com isso agora, as folhas secas vão acumulando e daqui a pouco um invento não vai dar conta de limpar meu jardim. Vou precisar, sei lá, de um furacão. Mas, furacão acaba sendo muito extremo, sabe mãe, ele leva até o que não era pra levar. Arrancaria tudo que eu já plantei e também…
- Tá bom Victor, chega, já entendi. Sabe o que anda precisando de um “invento” desse?
- Você? O povo? O papai não é, ele carrega um vendaval dentro dele.
- Não, nem eu e nem o povo. Seu quarto! Já viu como está?
- Mãe, não usa a conversa contra mim. Meu invento é sempre à meu favor.
- Victor, inventar não é nada disso. Quem te ensinou isso, meu filho?
- Eu inventei, mãe. Você não entende, né?