quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A Massa


- Moço, eu quero quatro pães.
- Ô rapazinho, você prefere branquinho ou moreninho?
- Ah, moço, esse assunto de cor dá muito pano pra manga. Eu prefiro o que tenha miolo.
- Você é esperto, heim?
- E você, moço, é o padeiro?
- Sim, sou eu quem faz esses pães.
- E qual seu nome?
- Antônio, e o seu?
- Victor. Eu te chamo de “senhor”?
- Só se eu te chamar também!
- Entendi! Antonio, você sabe me dizer se “intrigar” vem de “trigo”?
- Posso te dizer que eu to intrigado! 
- Você usa muito trigo, não é?
- Sim, bastante.
- E quanto mais trigo você joga na massa, mais intrigada ela fica, né?
- Bom, não sei te dizer ao certo quanto a ortografia, não estudei muito na vida. Mas, pela lógica, acho que sim, né?
- É, eu também não estudei isso ainda, só to aqui pensando alto. E pra dar liga na massa, você põe o que?
- Nesse pão eu ponho água.
- Água não cheira nem tem gosto, e nem tem cor. Parece até falta de consideração dar isso pra massa, né? Mas acho que ela nem percebe, você não acha?
- Acho que ela tá muito ocupada, trabalhando pra virar pão, e nem deve perceber mesmo.
- E por que, Antonio, você não põe perfume ao invés de água? Ela ia gostar.
- Ah, meu patrão me mata!
- Ele sabe fazer massa?
- Não, mas ele sabe ganhar dinheiro com ela.
- Com a sua massa?
- Pois é!
- E você não pode nem agradar a sua massa, que ele te mata?
- Eu acho que, pra ele, eu sou praticamente parte dessa massa. Sem Antonio não tem massa, nem pão. Virei um ingrediente, meu garoto!
- Você tá na massa… Mas, a massa é macia, deve ser confortável, né?
- Olha, rapazinho, ela até é macia. Mas, não dá pra se mexer dentro dela, né? A não ser que você seja muito forte!
- E quem não é muito forte, acaba ficando na mão do padeiro, né?
- Pois é. E o padeiro tá na mão do patrão.
- Então, a massa tá na mão do patrão.
- Isso. E o dinheiro também!
- Interessante. Eu vou procurar saber se podemos afirmar que a massa está intrigada.
- Descubra e me conte!
- Combinado. Mas, se eu descobrir que ela não está intrigada, não vou entender mais nada. Não pode se mexer sozinha; o que a une é um troço sem cor, cheiro ou sabor; o patrão é que diz pra onde ela vai, e quem ganha dinheiro é ele. Isso deixaria qualquer um intrigado, né?
- Justamente, meu rapaz. Justamente! E depois disso tudo, dão um descanso, pra massa crescer, antes de ir pro forno. Lá no forno, ela assa e vira pão. E vai pra mesa da casa de um monte de gente.
- Eu não gosto de nada que aqueça sem ser abraço, Antonio. Ninguém abraça a massa ao invés de coloca-la no forno?
- Não que eu saiba.
- Que pena. E é ali que ela morre, não é?
- Sim, mas muita gente fica feliz e enche a pança com isso.
- Morre sem ao menos um abraço… E nem tem velório, ou tem?
- Não, amiguinho. Depois de virar pão, ela vai pra dentro da nossa barriga, e é digerida.
- E a gente engole toda essa injustiça com a massa, sem fazer nada?!
- Sim…
- Seu patrão come pão também?
- Ô, se come! Espia ali o tamanho dele.
- A massa engorda o patrão… Mas, você é o padeiro e é magro.
- Eu trabalho muito e não posso comer pão aqui no horário de trabalho, é natural que eu não engorde.
- Eu to aqui pensando… Depois de digerida, a gente dá descarga na massa, né?
- Isso mesmo. E ela vai pro esgoto.
- Depois de morta, ela ainda sofre um bucado… Antonio, quantos pães tem aí nessa cesta toda?
- Aqui tem cinquenta pães.
- Eu quero todos. Quanto custa?
- Mas, você queria só quatro, o que houve? Acaso essa conversa te deixou tão faminto?
- Não, acho que nunca mais volto a comer pão. Mas quero leva-los pra não correr o risco de alguém compra-los e mastiga-los etc. Vou deixa-los descansar em paz.
- Mas, Victor, depois dessa fornada ainda tem muitas mais para sair. Você não vai conseguir fazer velório para todos os pães.
- Eu sei, fico triste por isso. Mas, o que eu puder fazer por eles, eu vou.
- Ok, rapaz. Custa doze reais e cinquenta centavos.
- Me ajuda a contar essas moedas, Antonio?

2 comentários:

Ei, você entendeu alguma coisa?